Diversas são as intervenções realizadas pelo poder público com o objetivo de desenvolver a piscicultura mas que se transformam em experiências negativas, produzindo efeitos contrários àqueles previstos nos projetos. A desconfiança na atividade e o desânimo dos produtores são os efeitos mais visíveis. No Brasil, é comum ouvir falar na construção de unidades de processamento de pescado onde não há produção que justifique a existência desses empreendimentos, estações de pisciculturas municipais para produção de alevinos que não funcionam, financiamentos a fundo perdido de veículos e equipamentos de transporte de peixes que nada transportam, etc. Se esse procedimento é incorreto, e não temos dúvida disso, então, qual é o papel do poder público no desenvolvimento da piscicultura? Respondendo a essa pergunta, acreditamos que nossa contribuição consiste não somente em fazer uma crítica às ações públicas que produziram efeitos negativos no desenvolvimento da piscicultura, mas sobretudo estimular o debate sobre como o poder público pode auxiliar a viabilização econômica da atividade.
O Sistema Local de Inovação (SLI) da piscicultura é uma forma de organização da produção, que envolve diferentes instituições privadas e públicas, que se fundamenta na necessária localização dos processos produtivos e geração de técnicas e produtos de acordo com os ambientes físico e econômico e necessidades dos consumidores alvo. O conceito se apóia na hipótese de que as vantagens competitivas da piscicultura em determinada região, dependem fundamentalmente da capacidade de construir uma organização produtiva que crie inovações de acordo com as especificidades locais e de mercado, proporcionando durabilidade à atividade. Portanto, essa visão se contrapõe às propostas de que para gerar desenvolvimento deve-se importar de outros países técnicas que dependem de produtos mais sofisticados que aumentariam a produtividade, mas que nem sempre promovem um retorno econômico satisfatório, assim como à idéia de que somente a exportação da produção pode gerar renda.
O SLI tem quatro componentes: a produção, a ciência, a formação e o financiamento, que devem estar em constante interação entre si para que produzam resultados, que cada uma das partes não produziria individualmente (ver fig. 1).
Figura 1. Representação do sistema local de inovação com os seus componentes em interação
Figura adaptada de Bureth, A. , Llerena, P. Système local d’innovation: approche théorique et premiers résultats empiriques. Actes du colloque Industrie et territoire : les systèmes productifs localisés. IREP-D, Grenoble, 21 et 22 octobre.1992. 369 – 393.
A produção é a totalidade de atividades que vai da fabricação de insumos à comercialização de produtos da piscicultura, passando pela criação. É na produção que se dá o aprendizado das técnicas e gestão inerentes a cada atividade da cadeia produtiva da piscicultura.
A ciência é a pesquisa-desenvolvimento, que tem na prática dos pesquisadores o objetivo de gerar informações voltadas para a resolução de pontos de estrangulamento do sistema produtivo, criando técnicas ou modelos de organização que possam criar oportunidades. O ideal é que as pesquisas sejam desenvolvidas nas unidades produtivas com o acompanhamento e participação de produtores, extensionistas e de outros pesquisadores que atuam nas diferentes áreas de conhecimento da piscicultura.
O terceiro componente baseia-se na educação e na formação dos produtores. O papel do profissional que atua nessa área não deve ser o de difusor de técnicas que os pesquisadores geram sem que tenha havido interação com a produção ou que tenham sido importadas e adaptadas de outras regiões ou países, como ocorre no modelo de desenvolvimento agropecuário amplamente utilizado no Brasil (ver figura 2).
Figura 2. Representação do modelo clássico adotado no Brasil de geração, adaptação e difusão de tecnologia
Ele deve ser um articulador das demandas e das relações entre os segmentos integrantes do componente produção com as instituições de pesquisa e financiamento. Além disso, deve estar também em constante processo de atualização técnica e acompanhar o comportamento do mercado para prestar um bom assessoramento aos produtores, assim como participar ativamente das reuniões das organizações de representação do setor produtivo.
O financiamento, o quarto componente, deve apoiar o desenvolvimento de um modelo de criação de peixes que tenha sido resultado das interações estabelecidas no seio do SLI. O financiamento de um projeto que se limita ao anseio individual de um pesquisador ou extensionista, às intenções de um político que não conhece as reais necessidades da piscicultura ou está relacionado à adoção de equipamentos e insumos que não integram um modelo desenvolvido no local, em que há somente o interesse de grupos econômicos, certamente não promoverá o desenvolvimento da piscicultura.
O papel do poder público no desenvolvimento da piscicultura
Considerando que a piscicultura é uma atividade praticada, majoritariamente, por pequenos e médios criadores que não têm recursos para investir em pesquisa-desenvolvimento e formação, assim como encontram grandes dificuldades em financiar a produção, a ação pública se torna de grande importância para o desenvolvimento do SLI. Assim, o papel reservado ao poder público é o de investimento em pesquisa-desenvolvimento, manutenção de grupos de extensionistas especializados de acordo com a demanda ou potencial de cada região e financiar o desenvolvimento e a adoção de modelos locais de criação de peixes. A política pública voltada para a piscicultura pode ter a mesma diretriz para todo o território nacional. As diferenças devem estar limitadas às especificidades da ação dos serviços de pesquisa, assistência técnica e extensão rural e financiamento, de acordo com as características do local.
A qualidade das relações existentes entre os agentes de cada componente do SLI é um fator decisivo para tornar a atividade mais ou menos competitiva.
A compreensão do conjunto de relações estabelecidas no interior do sistema é de fundamental importância para o poder público e a iniciativa privada planejarem as suas estratégias de ação. Para isso, deve ser feita a análise da rede sociotécnica da piscicultura em cada local. Essa estrutura é diferente da cadeia produtiva, que tem um caráter econômico e a sua análise não explica qualitativamente as interações existentes entre os seus diferentes elos. Uma região pode ter uma cadeia produtiva exatamente igual a de outra. Porém, a qualidade das relações existentes entre os segmentos que compõem cada uma são distintas, proporcionando resultados também diferentes na piscicultura que é praticada.
A rede sociotécnica é o conjunto de integrantes humanos e não humanos que faz com que, no caso da piscicultura, esta exista e seja praticada de determinada forma. Esse termo tem um sentido mais amplo do que cadeia produtiva por considerar a qualidade das relações estabelecidas na construção da atividade. Há a consideração dos aspectos de caráter social e técnico da piscicultura, não sendo possível separá-los para a sua compreensão. Para cada região há um tipo de rede sociotécnica. A rede é definida pelas características das relações sociais entre os diferentes agentes dos componentes do SLI, assim como pelo consumidor, das espécies de peixes utilizadas, dos equipamentos e insumos. Esses três últimos, são representados por porta-vozes que possuem objetivos que serão alcançados somente com a consolidação da rede sociotécnica.
É a rede que viabiliza a piscicultura. Assim, a atividade jamais se desenvolverá somente pelo desejo ou interesse individual de um técnico, um governante ou um produtor. Da mesma forma que determinada técnica de criação de peixes ou uma espécie, jamais será adotada coletivamente e contribuirá para o desenvolvimento da piscicultura devido a vontade individual de quem quer que seja. Quando a rede não se forma, a atividade não se desenvolve. Para que esta se desenvolva, o alcance do objetivo de um agente deve representar a resolução do problema de um outro agente, de forma que todos ganhem. As relações entre eles devem ser transparentes e baseadas na confiança. Se um agente manipula ou explora outro, a rede corre o risco de implodir e a atividade de se inviabilizar economicamente.
Os serviços públicos devem integrar o SLI da piscicultura, proporcionando a existência dos seus componentes e a interação entre eles, para formar a rede sociotécnica da atividade, que pode ser forte ou fraca. A força da rede está diretamente relacionada com o seu elo mais fraco. Em diversas regiões brasileiras este elo é o serviço público, seja por omissão de governantes ou ações que não são resultado da interação com a produção.
Colaboraram: Guy Fontenelle e Jean-Eudes Beuret (Agrocampus Rennes - França), Lionel Dabbadie e Olivier Mikolasek (Centre de Coopération Internationale en Recherche Agronomique pour le Développement - França) e Maria Inez Espagnoli Geraldo Martins (Centro de Aquicultura da UNESP)
Publicado na revista Panorama da Aqüicultura, Rio de Janeiro, v. 14, p. 37-41, 2004.