FORNECIMENTO DE URÉIA PARA RUMINANTES
A uréia é uma substância nitrogenada não-protéica (NNP). Quando ingerida, é hidrolisada em amônia, que é tóxica para todos os animais vertebrados. Mas os ruminantes conseguem utilizar essa amônia, graças à simbiose com microrganismos naturalmente presentes no seu rúmen-retículo, os quais empregam a amônia como substrato para a síntese de suas próprias proteínas.
Quando esses microrganismos passam com o bolo alimentar para o abomaso e duodeno, são então digeridos pelo ruminante, que assim se beneficia da proteína microbiana, de alta qualidade.
Esse mecanismo ocorre inclusive em ruminantes que não recebem uréia sintética na dieta. Naturalmente há uma pequena quantidade de uréia na saliva desses animais, produzida no fígado, a partir da amônia originária da degradação normal das proteínas presentes no organismo do animal. Quando o animal rumina, a saliva produzida leva essa uréia proveniente do fígado (“uréia endógena”) para o rúmen-retículo, onde ela vai atuar como substrato para a proliferação constante dos microrganismos.
Portanto, ao adicionar uréia sintética na ração dos seus animais, o pecuarista apenas está potencializando um mecanismo metabólico natural. Os episódios de intoxicação só ocorrem se a quantidade ingerida de uréia exceder a capacidade dos microrganismos de transforma-la em proteína verdadeira.
"MANDAMENTOS" PARA FORNECER URÉIA COM SEGURANÇA:
1) Introduza a uréia gradativamente, permitindo a adaptação dos microrganismos a doses crescentes de uréia. Se houver alguma interrupção no fornecimento da uréia (dois dias ou mais), reinicie o fornecimento observando um novo período de adaptação. O período de adaptação deve ser de uma semana pelo menos, e nele a concentração de uréia não deve passar da metade daquela prevista para o período de uso normal. Na realidade, o período de adaptação pode se estender por até dois meses decorridos do início da suplementação com uréia, período esse em que se observa uma melhoria paulatina no desempenho do animal.
2) Após o período de adaptação, limite o fornecimento de uréia ao máximo de 30 g/100 kg de peso do animal/dia.
Por exemplo, se V. pretende fornecer uréia para novilhos de 300 kg de peso, então a quantidade máxima diária de uréia é de 90 gramas/animal (30 g x 300/100 kg). Se os animais forem muito pesados, a quantidade diária de uréia não deve exceder o limite de 200 gramas/animal.
3) Evite que o animal ingira a uréia em uma única dose diária. Fracione tal dose em várias refeições (tratos) e, se isso não for possível, dê preferência por misturar a uréia com um volumoso deixado à vontade dos animais no cocho. Espontaneamente os animais vão procurar o cocho para comer diversas vezes ao longo do dia. Isso diminuirá o risco de ingerir a dose diária de uréia de uma vez só.
4) Evite introduzir uréia em lotes de animais famintos. Se um lote vem submetido a um período prolongado de jejum, aguarde alguns dias suplementando somente o volumoso. Forme lotes homogêneos de animais e aparte os dominantes. Apenas introduza a uréia quando o consumo voluntário do volumoso tornar-se estável no lote de animais.
5) A uréia também pode ser fornecida misturada ao concentrado ou junto ao sal mineral. Há vantagens e desvantagens nessas alternativas, mas para grandes lotes de animais, alimentados coletivamente, o mais seguro é mesmo misturar com o volumoso. A cana picada (muito pobre em proteína) é o principal volumoso a ser "corrigido" com uréia, sobretudo porque também fornece energia prontamente disponível no rúmen, a sacarose. Nesse caso, o padrão é adicionar 0,5% de uréia à cana durante o período de adaptação. A concentração de uréia pode ir aumentando gradativamente até atingir o limite de 1,0% após a adaptação.
Por exemplo, para uma carreta contendo 2.000 kg de cana picada, adiciona-se 10 kg de uréia no início da adaptação (2.000 kg x 0,5%). Para animais bem adaptados, a quantidade de uréia, nesse exemplo, pode chegar a 20 kg por carreta de cana picada (2.000 kg x 1,0%).
6) Para facilitar a mistura da uréia no volumoso, faça uma diluição dela em água, empregando quatro litros de água para cada 1 kg de uréia. Espalhe a solução sobre o volumoso com um regador e use um garfo (gadanho) para melhor distribuir a mistura no cocho. De preferência, o cocho deve ser coberto (para evitar chuva) e furado embaixo, para que um eventual excesso dessa solução de uréia não se acumule no fundo, o que favoreceria uma intoxicação.
7) Ao invés de uréia pura, utilize uma mistura de uréia com sulfato de amônio, na razão de 9:1. Além de ser ele próprio uma fonte de NNP, o sulfato de amônio fornecerá enxofre, necessário para os microrganismos sintetizarem os aminoácidos metionina e cisteína, importantes constituintes da proteína.
8) Procure fornecer também um concentrado energético, o qual representa uma fonte de energia prontamente disponível no rúmen, que vai estimular a proliferação microbiana (e, conseqüentemente, a síntese de proteína a partir da uréia).
9) A proteína verdadeira, obviamente, é de melhor qualidade nutricional que a uréia. Portanto, não substitua um alimento protéico por uréia e empregue essa somente para suplementar o déficit protéico da dieta. Além disso, há uma recomendação de que a uréia não deve fornecer mais que um terço do nitrogênio total da dieta. Para estimar tal nível máximo de inclusão da uréia na dieta, multiplique o requisito protéico do animal pelo fator 0,127.
Por exemplo:
requisito protéico de um garrote inteiro, zebuíno, com 350 kg de peso vivo, ganhando 1,0 kg/dia = 681 g proteína/dia
proteína verdadeira (2/3 do requisito protéico) = 681 / 3 x 2 = 454 g proteína/dia
uréia = 0,127 x requisito protéico = 0,127 x 681 = 86 g uréia/dia
Nesse exemplo, caso se adotasse o critério discutido no item 2, a quantidade de uréia a ser fornecida seria de 105 g/dia (30g x 350/100). Opte pelo critério que resulta na menor quantidade de uréia (86 g/dia) e certifique-se de que a dieta esteja mesmo fornecendo 454 g de proteína verdadeira.
10) Apesar das regras gerais acima expostas, não há uma "receita" única para o fornecimento de uréia aos ruminantes. As recomendações acima devem ser adaptadas caso a caso, e o bom-senso deve prevalecer. Acompanhe com atenção especialmente o consumo voluntário dos animais. Diante de uma súbita e acentuada redução do consumo voluntário, ou diante de sintomas de intoxicação, suspenda o fornecimento de uréia.
INTOXICAÇÃO POR URÉIA
Nos mamíferos em geral, a uréia sintetizada no fígado e excretada pelos rins é a principal via de detoxicação (eliminação) da amônia (NH3) que surge no catabolismo das substâncias nitrogenadas (aminoácidos, ácidos nucléicos e outras substâncias nitrogenadas contidos no organismo ou adquiridos através da dieta).
Os ruminantes, ao longo da evolução, se adaptaram a dietas com baixo teor protéico, típico das pastagens de gramíneas, desenvolvendo um mecanismo compensatório capaz de reciclar a uréia que seria normalmente excretada pela urina. Principalmente quando a dieta é pobre em proteína, essa uréia endógena (sintetizada no fígado do animal) é intensamente reabsorvida nos dutos coletores dos rins e segue pelo sangue até as glândulas salivares. Assim, a saliva do ruminante é rica em uréia e, mediante a ruminação, essa uréia é levada ao rúmen, onde é empregada na síntese de proteína microbiana. Graças a tal circulação de uréia no rúmen, os microrganismos ali presentes têm sempre uma fonte de nitrogênio à disposição, mesmo nos intervalos entre as refeições do ruminante ou quando a dieta é relativamente pobre em proteína.
A intoxicação surge quando o animal ingere uma quantidade excessiva de uréia, ou quando não há a devida adaptação da flora microbiana ao uso da quantidade de uréia adicionada na dieta. Pode se dever também à falta de uma fonte de energia prontamente disponível no rúmen, pois a síntese de proteína microbiana é endotérmica, só ocorrendo quando há energia suficiente para tal.
A intoxicação apresenta-se principalmente de forma aguda, quando a amônia proveniente da hidrólise da uréia se acumula no rúmen e daí passa para a circulação. Entre 30 e 60 minutos após a ingestão excessiva da uréia, o animal intoxicado apresenta sinais clínicos como tremores musculares, salivação intensa, ofegação, timpanismo, apatia, ataxia (incoordenação motora e desequilíbrio) e sudoração. Em casos graves, o animal fica prostrado, com as extremidades estendidas, tem convulsões e taquicardia, e pode morrer.
Geralmente não há tempo para realizar o diagnóstico de intoxicação através de provas laboratoriais (amônia sanguínea), a não ser talvez a leitura do pH do líquido ruminal, que se apresenta alcalino (acima de 7,5). O histórico de adição de uréia na dieta, portanto, passa a ser o principal fator a considerar no diagnóstico. Na necropsia, pode-se notar timpanismo, congestão da carcaça, edema pulmonar, espuma nas vias aéreas superiores e odor de amônia ao abrir o rúmen. Pode haver excesso de fluido no saco pericárdico e hemorragia no miocárdio.
Tratamento – para aliviar o timpanismo, deve-se passar uma sonda ruminal. Por ela, adiciona-se alguns litros de ácido acético a 6% (vinagre) para baixar o pH ruminal. Isso inibe a ação da urease, a enzima que hidrolisa uréia e forma amônia. Havendo recomendação do médico veterinário, aplica-se via endovenosa uma solução contendo 300 mL de ácido acético 1%, 500 mL de glicose 20% e sais de Ca e Mg. Em geral, o animal que consegue escapar de um episódio de intoxicação por uréia não fica com seqüelas, podendo voltar a ser alimentado com uréia posteriormente.